Os ventos carregados de areia sopravam implacáveis através das janelas altas do Templo de Uormu. Embora Ygha estivesse situada nas vastas planícies que se estendiam a leste das montanhas ocidentais, o vento frequentemente trazia consigo a poeira do grande deserto do norte, lembrando constantemente aos habitantes da proximidade daquela terra inóspita. Ul'ham, Supremo Paladino de Ygha, permanecia ajoelhado sobre o altar de mármore negro, seu martelo de guerra descansando à sua frente. A luz que escapava das rachaduras da pedra na cabeça do martelo projetava estranhos padrões nas paredes do templo, como se os próprios deuses estivessem escrevendo mensagens em uma linguagem que nem mesmo Ul'ham podia compreender.
O mensageiro entrou silenciosamente, curvando-se três vezes conforme a tradição exigia. Era um homem jovem, vestido com as vestes cinza-azuladas que identificavam um membro da Casta dos Olhos — os espiões de elite de Ygha.
“Fala”, ordenou Ul'ham sem se virar.
“Meu senhor, confirmamos as suspeitas. O Rei Ranael mobiliza seu exército nas fronteiras. Os números são… perturbadores. Estimamos pelo menos cinquenta mil homens só na fronteira leste, talvez mais.”
Ul'ham assentiu lentamente, seus olhos ainda fixos na estátua dourada de Uormu, o Deus da Ordem. “E o motivo?”
“Vingança, meu senhor. Interceptamos correspondências. Os mercenários do deserto tentaram assassiná-lo há três noites. Falharam, mas isso foi o catalisador. Ele planeja primeiro conquistar todo o deserto e depois…” o mensageiro hesitou.
“Continue”, a voz de Ul'ham era calma, quase desinteressada.
“Depois, acreditamos que pretenda unificar todo o norte sob seu comando.”
Um sorriso sutil apareceu no rosto severo de Ul'ham. Levantou-se, sua imponente figura de quase dois metros projetando uma sombra longa no chão de pedra. Seu físico, moldado por décadas de treinamento militar e devoção religiosa, impunha respeito imediato. Vestia a armadura tradicional dos Paladinos Supremos: placas de metal escuro gravadas com runas antigas e adornadas com símbolos dos deuses gêmeos, Uormu e Drakkare.
“Convoque o Conselho dos Anciãos e os Capitães Paladinos. Não para discutir defesa, mas para preparar uma visita diplomática.”
O mensageiro pareceu surpreso. “Diplomática, senhor?”
Ul'ham ergueu seu martelo, a luz nas rachaduras brilhando com maior intensidade, como se respondesse ao seu toque.
“Por vezes, o melhor caminho para evitar ser conquistado é juntar-se ao conquistador. Ygha não será subjugada… será parceira. E eventualmente, talvez seja muito mais.”
Ygha era um reino como nenhum outro em Anthares. Enquanto outras nações se organizavam em torno de nobreza hereditária ou poder militar, Ygha tinha sua estrutura fundamentada na devoção religiosa e no sistema de castas que regulava toda a vida social.
No topo da hierarquia estavam os Anciãos, doze homens, paladinos ou sacerdotes, que haviam dedicado suas vidas ao estudo das escrituras sagradas de Uormu e Drakkare. Cada Ancião supervisionava um aspecto diferente da sociedade: justiça, economia, defesa, educação e assim por diante.
Abaixo deles vinham os Paladinos, guerreiros-sacerdotes que combinavam maestria marcial com devoção religiosa. Vestidos com armaduras negras adornadas com símbolos divinos, os Paladinos não eram somente soldados, mas guardiões da fé. Treinavam desde a infância em vastos salões subterrâneos, aprendendo a canalizar a fé através de suas armas.
A terceira casta era composta pelos Sacerdotes, homens e mulheres que haviam recebido o dom de manifestar milagres divinos. Enquanto os Paladinos lutavam, os Sacerdotes curavam, abençoavam e construíam. Eram engenheiros, médicos, conselheiros e professores.
O povo comum ocupava o quarto nível, artesãos, comerciantes e trabalhadores que mantinham o funcionamento diário da sociedade. Embora ocupassem o estrato mais baixo, não eram oprimidos — a doutrina de Uormu exigia que todos fossem tratados com justiça e respeito.
“Os deuses nos guiaram corretamente,” declarou Eman, o mais velho dos Anciãos, seus olhos leitosos fixos no infinito. A Câmara do Conselho, uma ampla sala circular escavada na rocha, estava iluminada por cristais arcanos de luz azul-esverdeada — produtos do comércio com Aurora Arcana. “A visita a Nakaran é o caminho”.
“Demonstrar força através da humildade”, concordou outro Ancião, sua barba branca contrastando com sua pele morena. “Oferecer aliança antes que nos seja imposta pela espada”.
Ul'ham permaneceu em silêncio, avaliando as opiniões dos doze Anciãos. Quando todos haviam falado, ele finalmente se pronunciou:
“A questão não é se devemos nos aliar a Ranael, mas como transformaremos essa aliança em vantagem para Ygha. Apresentar-me-ei como um parceiro, não como um suplicante. E para isso…” Ele olhou para o Ancião responsável pelo tesouro sagrado, “precisaremos de um presente adequado”.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de compreensão. Todos sabiam a que presente Ul'ham se referia.
“Há sete gerações, os Dwaers confiaram na tutela de Ygha para a Lâmina da Alma”, protestou um dos Anciãos mais jovens. “É uma relíquia sagrada!”
“E continuará sendo sagrada nas mãos de quem a usar para unificar Anthares”, respondeu Ul'ham com firmeza. “Os deuses não criaram a lâmina para ser admirada em um templo, mas para ser usada quando a hora certa chegasse. E a hora chegou”.
A comitiva de Ygha atravessou a grande serra norte com eficiência militar. Cinquenta Paladinos de elite, vinte Sacerdotes e o próprio Ul'ham, montados em cavalos negros criados especialmente para as condições da região. Bandeiras brancas com detalhes dourados, com o símbolo de Ygha, tremulavam no vento árido.
Nakaran erguia-se no horizonte como uma fortaleza imponente. Diferentemente das cidades circulares comuns no continente, Nakaran havia sido construída em estrutura angular, suas muralhas formando um hexágono perfeito ao redor da cidade. No centro, elevava-se o palácio real, uma construção massiva de pedra escura com torres pontiagudas que pareciam perfurar o próprio céu.
Os portões da cidade abriram-se para receber a comitiva, uma honra raramente concedida a visitantes estrangeiros. Soldados em armaduras de aço polido alinhavam-se em formação perfeita, lanças erguidas em saudação. O poderio militar de Nakaran estava em exibição calculada — uma mensagem clara de força.
No salão do trono, Ranael aguardava. Era um homem impressionante, alto e musculoso, com cabelos escuros presos em tranças elaboradas adornadas com pequenos discos de ouro e prata. Sua barba estava cortada rente ao rosto, destacando a cicatriz que corria de sua têmpora esquerda até o queixo — lembrança da tentativa de assassinato recente.
Ao seu lado direito estava exposto, em um pedestal de madeira escura, o símbolo de sua legitimidade — a coroa de seu pai, manchada com o sangue nunca limpo do monarca assassinado.
“Ul'ham de Ygha”, anunciou o arauto quando a comitiva entrou no salão. “Supremo Paladino e Voz dos Deuses Gêmeos”.
Ul'ham avançou sozinho, seu martelo de guerra preso às costas. Parou a precisamente dez passos do trono — nem tão perto para parecer ameaçador, nem tão longe para parecer subserviente.
“Rei Ranael”, inclinou levemente a cabeça. “Trago saudações de Ygha e uma proposta que beneficiará ambos os nossos povos”.
Ranael estudou o visitante por longos momentos antes de responder. “Interessante momento para uma visita diplomática, Supremo Paladino. Especialmente quando meus exércitos estão se reunindo nas planícies”.
“Os deuses revelam verdades àqueles que sabem ouvir”, respondeu Ul'ham sem hesitação. “E a verdade que vejo é que nossos destinos estão entrelaçados. Você planeja subjugar o deserto, vingar a morte de seu pai, e talvez, mais”.
Um silêncio tenso permeou o salão. Os conselheiros de Ranael trocaram olhares nervosos.
“E o que Ygha tem a ver com meus planos?”, perguntou Ranael, sua voz controlada e fria.
“Tudo”. Ul'ham deu um passo à frente. “Pois ofereço não submissão, mas parceria. O exército de Ygha marchando lado a lado com o de Nakaran. Meus Paladinos abrindo caminho através das defesas inimigas. Meus Sacerdotes curando seus feridos e construindo estradas e fortificações por onde passarmos”.
“E em troca?”, os olhos de Ranael estreitaram-se.
“Em troca, desejamos partilhar da glória e dos frutos da conquista. Um lugar à mesa quando o novo mapa de Anthares for desenhado”. Ul'ham fez uma pausa calculada. “E para demonstrar nossa sinceridade e compromisso com esta aliança, trago um presente”.
Com um gesto, dois Paladinos avançaram carregando um estojo longo de madeira escura, entalhado com símbolos antigos. Quando o abriram diante de Ranael, até os guardas mais disciplinados não conseguiram conter suas exclamações de espanto.
A Lâmina da Alma repousava sobre veludo negro. Era uma espada longa e elegante, sua lâmina feita de um metal prateado que parecia pulsar com vida própria. A empunhadura era de ouro escurecido pelo tempo, incrustada com pedras que mudavam de cor conforme a luz incidia sobre elas. Mas o mais impressionante era a aura que emanava da arma — uma sensação quase palpável de poder contido.
“A Lâmina da Alma”, murmurou Ranael, seus olhos fixos na espada lendária. “A arma que pode conceder vida eterna a seu portador.”.
“Que pode curar seu portador cada vez que tira uma vida”, corrigiu Ul'ham. “Um objeto de poder inestimável que agora pertence ao Rei de Nakaran, como sinal da lealdade de Ygha.”.
Ranael levantou-se lentamente de seu trono, descendo os degraus que o separavam de seu presente. Sua mão pairou sobre a empunhadura, hesitante por um momento, antes de agarrá-la firmemente. Ao erguer a espada, a lâmina pareceu captar toda a luz do salão, brilhando como se fosse feita de fogo líquido.
“Com esta lâmina”, declarou Ranael, sua voz ressoando pelo salão, “selaremos nosso pacto com o sangue inimigo”.
Nos dias que se seguiram, mensageiros cavalgaram furiosamente entre Nakaran e Ygha. Enquanto os detalhes da aliança eram formalizados, os preparativos para a guerra avançavam em ritmo acelerado.
Em Ygha, os Sacerdotes da Terceira Casta trabalhavam incessantemente, escavando túneis e erguendo estruturas que serviriam como postos de suprimento e hospitais de campo. As runas arcanas adquiridas através do comércio com Aurora Arcana eram estrategicamente posicionadas para fortalecer as construções e garantir abastecimento de água e preservação de alimentos.
Ao mesmo tempo, equipes de construtores formadas por membros do povo comum partiam em direção ao deserto, estabelecendo rotas que permitiriam o movimento rápido de tropas e suprimentos. A eficiência e velocidade com que essas estradas eram construídas demonstravam a superioridade da engenharia de Ygha, fundamentada tanto em conhecimento técnico quanto na canalização da energia divina.
Em Nakaran, Ranael supervisionava pessoalmente o treinamento final de suas tropas. Seu exército já era impressionante antes — agora, com a perspectiva da aliança com Ygha, tornava-se verdadeiramente formidável.
“Cinquenta mil soldados de Nakaran," relatou o General Khorsav, um veterano de inúmeras batalhas. “Dez mil arqueiros, quinze mil cavaleiros pesados, e o restante formado por infantaria. Além disso, dez mil mercenários das tribos do leste já confirmaram sua participação.”.
Ranael assentiu, seus olhos percorrendo os campos de treinamento onde milhares de homens se exercitavam sob o sol impiedoso. A Lâmina da Alma estava agora constantemente em sua cintura, seu peso um lembrete constante do poder que agora possuía — e das possibilidades que se abriam.
“E os reforços de Ygha?” perguntou, ajustando uma das luvas de couro reforçado que usava.
“Vinte mil Paladinos, três mil Sacerdotes combatentes, e dois mil especialistas em logística e suporte”, respondeu o general. “Números modestos comparados aos nossos, mas os relatórios sobre suas capacidades são… inquietantes.”.
“Inquietantes?”
“Um único Paladino de Ygha vale por cinco soldados comuns, Majestade. E quanto aos Sacerdotes, podem curar ferimentos que matariam qualquer homem em questão de minutos.”.
Ranael sorriu, passando os dedos pela empunhadura da Lâmina da Alma. “Então temos um exército de mais de sessenta mil homens de Nakaran, mais vinte mil que valem por cem mil. O deserto não terá chance. Ninguém terá.”
O dia da marcha chegou envolto em uma atmosfera quase mística. O céu amanheceu com uma coloração avermelhada, como se os deuses tivessem derramado sangue sobre as nuvens — um presságio que os Sacerdotes de Ygha interpretaram como favorável à campanha que estava prestes a começar.
A junção dos exércitos aconteceu na vasta planície que se estendia a oeste de Nakaran. Primeiro vieram as legiões de Ranael, marchando em formações geométricas perfeitas, suas armaduras reluzindo sob o sol nascente. Estandartes vermelhos e brancos tremulavam ao vento, e o troar dos tambores de guerra marcava o ritmo dos passos de dezenas de milhares de homens.
Então, no horizonte, apareceu o exército de Ygha.
Os Paladinos marchavam à frente, suas armaduras negras contrastando dramaticamente com o deserto dourado. Avançavam em silêncio absoluto, sem tambores ou trombetas — apenas o som ritmado de vinte mil pés tocando o solo simultaneamente. Atrás deles vinham os Sacerdotes, vestidos em mantos azuis profundos, carregando cajados encimados por cristais que emitiam um brilho pulsante.
O momento em que ambos os exércitos se encontraram ficaria gravado na memória de todos os presentes. Ranael, montado em seu magnífico cavalo de guerra negro, avançou sozinho para o espaço entre as duas forças. Do outro lado, Ul'ham fez o mesmo, seu martelo de guerra resplandecendo com aquela luz sobrenatural que emanava das rachaduras na pedra.
“Este é o dia”, declarou Ranael quando se encontraram no centro, sua voz poderosa carregando-se pelo campo, “em que o norte se une sob uma única bandeira. O inimigo não é Nakaran ou Ygha — é qualquer um que se oponha à nossa visão de um continente unificado e forte!”
Um rugido ensurdecedor ergueu-se das fileiras de Nakaran. Os guerreiros de Ygha permaneceram em silêncio disciplinado, mas seus olhos brilhavam com intensidade quase sobrenatural.
“Porto do Sol será apenas o começo,” continuou Ranael, desembainhando a Lâmina da Alma, que brilhou com luz própria sob o céu matinal. “O deserto cairá primeiro. Depois, a floresta que divide nosso continente. E então…”
Ul'ham completou, sua voz calma contrastando com o fervor de Ranael: “E então, o sul aprenderá o verdadeiro significado do poder.”.
Ranael ergueu sua espada ao céu, e um reflexo impossível fez com que a luz parecesse explodir da lâmina em todas as direções.
“MARCHA!”
O exército combinado pôs-se em movimento como um único organismo colossal. Do alto, pareceria uma imensa criatura metálica rastejando pela terra, devorando a distância em direção ao oeste. Sua primeira parada: Porto do Sol, a cidade costeira que controlava o acesso marítimo ao deserto norte.
À frente das tropas, Ranael e Ul'ham cavalgavam lado a lado. O Rei de Nakaran com sua espada lendária, o Supremo Paladino com seu martelo divino. Dois líderes unidos não apenas por conveniência estratégica, mas por uma visão compartilhada de dominação.
Anthares estava prestes a mudar para sempre.
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Yampick
"Um dos pilares da criação de Arcania."